Carai, que calor! Que
jeito melhor de começar uma croniqueta do que seguindo os passos do Bruxão,
nóis que voa, Machado de Assis? Olha o que ele diz: “Há um meio certo de começar
a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor!
Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente
sacudindo a sobrecasaca.”
Delícia de ralação forma/conteúdo. Eis aqui uma crônica e uma quentura de
incendiar um sujeito que se arriscasse a usar sobrecasaca. Isso Machadão disse
no distante século XIX em que não havia aquecimento global, asfalto, prédio
espelhado e Geraldo Alckmin.
Declarado nosso assunto, claro que poderia gastar meu latim aqui escrevendo
sobre o nosso eterno governador chuchu de cerca e de suas peripécias na gestão
da água em São Paulo, citando, por exemplo, o prêmio para o qual foi indicado
por sua competentíssima administração. Mas a boca seca, o suor desce e a
cerveja gela em igual proporção. O que me faz lembrar que a vida é feliz - nos
intervalos da tristeza – e volto à minha tenra infância.
O ano era 94, pleno carnaval. Romário era o cara, o Real tava chegando (a
moeda, po) e ainda havia inocência, mesmo com banheira do Gugu e grupo É o
Tchan. Como era de praxe entre os habitantes da periferia paulistana,
passávamos as datas festivas nas maravilhosas praias do nosso litoral sul, Praia
Grande no nosso caso. Que lugar, meus queridos! Tinha mais gente do meu bairro
lá que no meu próprio bairro. Todos se conheciam por nome, apelido e jeito de
bater na bola. O calor era mais sufocante que churrasqueira de abafar costela e
as pessoas se esparramavam pelas ruas em busca do conforto na cerveja ou na guerra
de bexigas d’água mais próxima. Duas soluções igualmente lindas.
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Abestado é você |
Mas nem tudo são flores. Ainda menor de idade, não podia aproveitar das fabulosas
propriedades da cerva e, dias antes das festividades, estava tiritando de
febre, acamado por uma gripe que insistia em possuir corpo e alma. Mamãe,
preocupada, não permitia que eu saísse do seu lado e fuzilava com o olhar e com
uma pistola automática .40 quem ousasse jogar uma gota d’água sequer em mim.
Mas que merda! Era a melhor época do ano aquela. Nos anos anteriores, saia com
outros baderneiros pelas ruas com o mais variado arsenal, distribuindo saraivada
de bexiga d’agua, baldada de água com gelo, spray de espuma, confete,
serpentina... Era foda. Em 93, vejam só, fora eleito o mais certeiro atirador
dentre os moleques depois de fazer uma bexiga pousar no colo do motorista do
carro que, displicentemente, passava no fogo cruzado. Ganhei também, apesar de
já ostentar certo excesso de peso, o prêmio de mais veloz da rua ao fugir do
supracitado motorista.
No entanto, aquela não era a festa pra mim. Mamãe insistia em minha
prisão e me cercava de cuidados. Todos brincavam, eu chorava. Sério, nunca se
viu criança mais infeliz. Rezava baixinho pra que qualquer respingo de alegria
me acertasse; nada.
É nesse momento da vida de uma criança que as utopias, os mitos e os
heróis são criados. Vi despontar, entre um folião e outro, um homem com o mais
largo dos sorrisos. Era papai! Ele vinha cambaleando e dançando, ao mesmo tempo
em que acertava com maestria a todos com uma colorida pistola d’água.
Aproximava-se resoluto de mamãe e de mim, seu olhar brilhava. Deparou-se com um
balde cheio d’água e, ao invés de passar por cima, apanhou-o vigorosamente. O
sorriso já virara gargalhada. Até que veio, cortante, a fabulosa frase: “Deixa
o menino brincar, mulé!”, seguido da mais abençoada baldada d’água sobre minha
cabeça.
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Papai tava meio assim |
Que alegria! Sai correndo em êxtase sem perceber a discussão que
travavam agora meus progenitores (Aliás, que fique claro o heroísmo de ambas as
partes, mamãe ao proteger, papai ao expor sua cria ao mundo.) e me juntei à
primeira turba ensandecida que pulava e vivia a calorosa emoção carnavalesca.
Esse dia ficou cravado em minha memória como um aprendizado de frustração
e libertação.
A vida vem me dando tapas ardidos dessa lição há tempos. Essa
memória num dia quente só faz querer viver de novo esses momentos de ausência e
distração da tristeza que tanto nos fazem bem. Vou agora, como prêmio pelo
empenho nessa maçante rotina, buscar meu merecido fardo de Bavaria. Espero que
a ressaca não venha como malária existencial, gripe dos anos 90.
Inté mais!